Sobre Bruxaria Distro


Bruxaria Distro surgiu da mistura do DIY ("faça-você-mesma") punk com uma perspectiva holística de saúde e permacultural de ecologia.

As Bruxas não são mulheres

Nunca mudei porque alguém me convenceu da sua boa ou verdadeira ideia. Nunca mudei convencida por uma boa ou justa ação. Sempre mudei à base de feitiços, sejam estes relações, teorias, práticas, narrações… e justamente, de fato, um feitiço desfaz estas fronteiras. Mudanças que se apresentaram a mim primeiramente como bruxaria. Cada orgia, uma cerimônia sabática. Cada saber e prática novos, um feitiço. Cada membra da manada, uma bruxa.

As bruxas existiram e seguem existindo. As bruxas eram, e são, as hereges da ordem heteropatriarcal. As bruxas não são nem uma fantasia de contos de fadas, nem a fantasia de contas de fados. Bruxaria é uma palavra que nos roubaram para substituí-la por política. E arte. E ciência. E conhecimento… uma atividade diurna e normalizada, incapaz de subverter essa mesma ordem.

A história oficial (a narração consensual) oscila entre a negação e a negação. A negação de que a caça às bruxas tenha sido a base do estabelecimento da sociedade ocidental atual. E a negação de que eram bruxas.

A primeira nega que tenha sido um projeto de extermínio com fins muito claros: a eliminação voluntária e organizada das que manifestavam uma oposição e uma diferença à universalização da norma em expansão naquele momento. Essa primeira negação provém daqueles que defendem a norma atual desde seu lado direito.

A segunda nega que as bruxas eram mais que mulheres. Nega-se, sob o pretexto paternalista de defendê-las, que eram mulheres opostas à ordem heteropatriarcal. Uma postura vitimizante, que pretende transformar as bruxas em mulheres “normais”, quando eram mulheres que se definiam precisamente em oposição a esta norma, quando eram feministas. Pela mesma ocasião, minimiza-se a violência da ordem heteropatriarcal, apresentando a caça às bruxas como um excesso ocasional desta ordem e não como sua característica estrutural. Abrindo a porta para que este poder possa ser outra coisa. Uma negação, essa vez, que vem do lado esquerdo, pretendendo que este poder já não é o mesmo e que as bruxas, como tal, não existiam. Negando, assim, que podem existir ainda.

A caça às bruxas foi um extermínio de antagonistas e desertoras à norma. Tinham práticas sexuais opostas à heterossexualidade e viviam autônomas do patriarcado. Tinham modos de vida organizados em redes que combinavam a criação de zonas autônomas com o nomadismo, e que se opunham à herança patriarcal e estatal da terra e das riquezas. Tinham saberes situados e ordens simbólicas próprias que se opunham à centralização do conhecimento e da teologia dogmática. Trabalhavam para elas ou não trabalhavam, e se opunham à relação hierárquica feudal e matrimonial. A caça às bruxas tem sido uma guerra total (militar, ideológica, cultural, de gênero, sexual, territorial, econômica) para conseguir a modernização (quer dizer: a fase imperialista, totalitária e estatal) do regime heteropatriarcal. A caça às bruxas tem sido acima de tudo uma normalização planejada e sistemática.

A imagem folclórica que se tem, hoje em dia, da “Bruxa” é o reflexo dessa normalização. Uma imagem que nos apresenta uma bruxa sem bruxaria, uma mulher que tinha mais relação com a “natureza” por sua própria natureza. Com essa visão essencialista, se nega que as bruxas, por sua identidade escolhida de hereges, conseguiram desenvolver por si mesmas seus conhecimentos. Que haviam obtido estes conhecimentos por meio de suas práticas, e não por meio de algumas supostas características inatas que lhes permitia entender melhor as plantas, o corpo, a terra… e se limita assim, retrospectivamente, estes conhecimentos a algumas poções de plantas e feitiços esotéricos sem efeitos tangíveis. Opõem-se a bruxaria à técnica e à ciência “moderna”. Mantém-se a ideia de que suas práticas eram pré-lógicas, pré-científicas, que eram as que tinham o saber mais amplo do momento.

As bruxas não tinham mais conhecimentos sobre a “natureza”, e sim sobre o “entorno”. As bruxas eram as mais hi-tech do momento. As bruxas já eram ciborgues. Manipulavam os signos, símbolos, objetos e corpos para transformar efetivamente o mundo, à base de leis enunciadas e enunciados lidos, à base de narrações constitutivas de novas realidades, à base do uso da química e de suas possibilidades para alterar as capacidades mentais, à base de intervenções sobre o corpo para alterar suas funções, à base de práticas sexuais capazes de gerar identidades não-normativas…. Seus feitiços eram efetivos e hoje se encontram catalogados sob a categoria de arte, política, filosofia, técnica, ciência, sexualidade… A bruxaria era, e é, a manipulação e a transformação efetiva do mundo à base de feitiços. As bruxas eram, e são, as hereges da ordem patriarcal. E nem a repressão, nem a assimilação lhes farão desaparecer, porque são as que efetivamente têm a capacidade de mudar o mundo. Necessitamos outra forma de política, e pode ser que essa forma não seja outra coisa que a bruxaria. E o feitiço mais efetivo para isto é reconhecer-nos como bruxas.

(texto de Yan Quimera, publicado no livro Sexual Herria de Itzar Ziga – Editora Txalaparta, 2011)